Anti-experyência em poema e formol

Érico Braga Barbosa Lima

Sentimento estranhíssimamente natural
é finalmente ter a certeza súbita e pretérita de que não sou herói
injustiçado ou obscuro, sabedor privilegiado único das grandes glórias
e mazelas
que me tornariam mais forte
não morresse sempre,
     todo dia,
não tivesse agora esse sentimento
sobrenaturalíssimamente inato, íntimo
total
extravagantíssimamente comezinho de saber que
não fui o mago bêbado que desinventou o sortilégio
que não serei a vítima que sofria antes mesmo do nascimento do algoz
nem Dali nem Da Vinci nem ar nem terra
nem vini nem vidi
nem vincit

Veja você

que não sou nada daquilo que
     achei que um dia seria que me refaria que enfrentaria

Esquece!
Nada disso

Ainda mesmo hoje cedo, desisti de matar o rei...

Acordei vendo a manhã
no tosco movimento do dia
retilíneo como ele só
empurrando um carro na ladeira da rua
     para o centro das coisas do mundo
descendo no precipício dessa lua calva argêntea fria
de paralelepípedos quadrados
juntos
sob o preto das rodas
que emborracham tudo que tocam
tudo que beijam
até o ar
até o som
plásticos
como um beijo

toco nas mãos que tocam
e vedo os poros de um lamento insosso -
tato
de parede fria

Fico parado bem aqui no centro do meu quarto e confesso com bochechas não rosadas
não rubicundas ou pudibundas como as de um querubim que não ganhei e não atingi
nada daquilo que queria ou quis gostar
Hoje cedo já acordei sabedor profundo e simples que aquilo tudo que queria não é mais
o que desejo agora
(sábio frio de que tudo aquilo que queria se
     perdeu num desejo que não sei mais
          o que era aquilo e o que era o desejo daquela
hora)

Não sou e não quero mais
ser herói do meu próprio sonho de um sonho
     que agora não tem mais
heróis.
Meu sonho não quer
não sonha
não é

Vivo
e agora porque não morra
viva
Permaneça somente vivendo
pra sempre
até não viver mais até não saber mais até não morrer mais até não ser mais até não mais
até!

De onde estou, que acordo sem olheiras, que não diviso meus olhos ou a sombra de meu perfil de cílios de vênus
sem olhos vejo-me do jeito que sou
e sou outro
me vendo do jeito que sou
e sou outro
que vê do jeito que sou
e sou outro
     e outro
     e mais outro
e mais ainda o outro
que sempre sou

que verdade se esconde por entre mim mesmo que sempre a conheci
mas desconheço-a em mim ?...

o outro
que sempre eu
sim!...

Há toque
(sobre essa cama em que me escrevo)
     Há toque -
é de minha pele que me toca
pelo avesso
     Há toque -
é de minha pele
que me toca
o oco do espesso
     Há toque -
é de minha pele que me toca
o nervo sem meio...

Sinto o toque pelo dentro da casca e
sou eu que sinto o que da pele descola pro centro como aquilo que se evola para o fundo do
espelho

sou o que sinto e sinto minha pele que sente e é só
     e é muito
mas é sempre

Sensibilissimamente antisensual bronha sem pau saber
que nunca serei nada, nem anti-herói de mim mesmo

Não me satisfaço e nem quero mais ímpeto
que me arrebate,
que me arrebata,
     eu peço água
     e não quero água

Agonia era agora coisa distante e indiferente
     como uma criança que brincava de alguma
          coisa que não temos tempo de saber e
               descartamos naturalmente como
                    inútil brincadeira de criança
                         fútil.

Junto
junto de nós ela brinca mas não quero saber que
junto de nós ela brinca
e não queremos! mesmo!
saber!

Junto
muito junto

A criança é aqui do lado de bem daqui de minha perna e se
agarra nela e se roça e é tão morta quanto
o cavalo-marinho aquele
que havia...
     Um cavalo marinho que tenho em um chaveiro de
cavalo marinho morto em formol para
cavalos marinhos mortos
ficarem divertidos
divertindo hipnóticos o olhar do outro morto
do lado de fora

tão normal
     um cavalo marinho
          morto
e o olho em anti-formol
que o devora

na garrafa do chaveiro
uma criança
     morta
sem formol
se agarra
em minha perna
     e hoje eu a arrasto pela rua como se fosse a coisa mais natural do mundo